sábado, 9 de fevereiro de 2013

O Dentista Coxa-Branca



Por Cristóvão Tezza

Dentista é como escola – a gente só vai porque é obrigado. Sei que é politicamente incorreto falar mal dos dentistas, reforçando o preconceito contra aquela cadeira incrementada que parece nave espacial, com suas luzes e aparelhos cintilantes, mas para algumas coisas não há eufemismo possível. A essa altura da vida, sentar ali é só ouvir notícia ruim. E agüentar as broncas enquanto ele espeta nossos dentes, o cenho fechado: Quando você veio a última vez mesmo? Humm...
Segue-se a preparação, que se tempera com algum assunto leve, o tempo, vai chover, semana passada até que fez calor, de fato, nessa quadra não dá para estacionar – e ele aciona o pedal. Você começa a subir, ajusta-se a altura, ele põe o babador (é o único lugar do mundo desde a pré-infância em que alguém põe um babador em você e você não reclama), você sente a súbita inclinação, desarmado, e o panorama começa a se assemelhar a uma sessão dos torturadores do antigo DOI-Codi tentando arrancar a confissão do aparelho comunista junto com um dente: “Abra a boca”, e você obedece, olhos arregalados, o facho de luz direto no rosto.
 É o momento em que me vejo como uma figura de um museu de História Natural, o maxilar pré-histórico aberto com os dentões à mostra – dentes são objetos primitivos e incontroláveis, avessos à evolução natural, sobras de uma outra era tentando encaixar suas garras disformes num espaço que não foi feito para eles; e lá vem o som do motorzinho, aquela broca requintada de produção de sofrimento, tudo perfeitamente projetado para você se sentir mal.
Até aí, tudo bem. É a minha penitência. Tivesse me cuidado, nada disso estaria acontecendo. Mas, entre uma perfuração e outra, a salivada borbulhando no anzol do aspirador espetado no meu beiço, ouço a voz gentil e traiçoeira do dentista: “E o gol do Henrique Dias, hein? Estragou a festa de vocês.” Eu não posso fazer nada. Minha boca aberta está presa por uma focinheira de borracha, língua inchada pelo anestésico, o lábio formigante de nervos mal-dormidos, a broca acertando o fundo do canal com a precisão de acupuntura chinesa. “Vocês até que chegaram pertinho.” Agarro os braços da cadeira para não fazer besteira contra essa covardia coxa-branca, busco algum mantra mental que me acalme. “Dessa vez o Atlético perdeu a pose!” – e a broca avança pela caverna da minha alma.



Penso em pagar com um cheque sem fundos, o que seria pouco pelo que passei. A dúvida persiste: será que ele sabia que eu sou um atleticano tribal, que ele correu risco de vida, que o que ele fez é passível de processo no Procon? Tentei dizer algo, mas mordi a língua anestesiada, a cara intumescida – impossível assobiar. Um dia para esquecer. Respirei fundo. Meu lado zen enfim venceu. Saí de lá com uma promessa radical: ou o Atlético arruma um time decente para o Brasileirão, ou juro que nunca mais vou ao dentista.

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