Por Cristóvão Tezza
Dentista é como escola – a gente só vai
porque é obrigado. Sei que é politicamente incorreto falar mal dos dentistas,
reforçando o preconceito contra aquela cadeira incrementada que parece nave
espacial, com suas luzes e aparelhos cintilantes, mas para algumas coisas não
há eufemismo possível. A essa altura da vida, sentar ali é só ouvir notícia
ruim. E agüentar as broncas enquanto ele espeta nossos dentes, o cenho fechado:
Quando você veio a última vez mesmo? Humm...
Segue-se a preparação, que se tempera com
algum assunto leve, o tempo, vai chover, semana passada até que fez calor, de
fato, nessa quadra não dá para estacionar – e ele aciona o pedal. Você começa a
subir, ajusta-se a altura, ele põe o babador (é o único lugar do mundo desde a
pré-infância em que alguém põe um babador em você e você não reclama), você
sente a súbita inclinação, desarmado, e o panorama começa a se assemelhar a uma
sessão dos torturadores do antigo DOI-Codi tentando arrancar a confissão do aparelho
comunista junto com um dente: “Abra a boca”, e você obedece, olhos arregalados,
o facho de luz direto no rosto.
É o momento em que me vejo como uma figura de
um museu de História Natural, o maxilar pré-histórico aberto com os dentões à
mostra – dentes são objetos primitivos e incontroláveis, avessos à evolução
natural, sobras de uma outra era tentando encaixar suas garras disformes num
espaço que não foi feito para eles; e lá vem o som do motorzinho, aquela broca
requintada de produção de sofrimento, tudo perfeitamente projetado para você se
sentir mal.
Até aí, tudo bem. É a minha penitência.
Tivesse me cuidado, nada disso estaria acontecendo. Mas, entre uma perfuração e
outra, a salivada borbulhando no anzol do aspirador espetado no meu beiço, ouço
a voz gentil e traiçoeira do dentista: “E o gol do Henrique Dias, hein?
Estragou a festa de vocês.” Eu não posso fazer nada. Minha boca aberta está
presa por uma focinheira de borracha, língua inchada pelo anestésico, o lábio
formigante de nervos mal-dormidos, a broca acertando o fundo do canal com a
precisão de acupuntura chinesa. “Vocês até que chegaram pertinho.” Agarro os
braços da cadeira para não fazer besteira contra essa covardia coxa-branca,
busco algum mantra mental que me acalme. “Dessa vez o Atlético perdeu a pose!”
– e a broca avança pela caverna da minha alma.
Penso em pagar com um cheque sem fundos, o
que seria pouco pelo que passei. A dúvida persiste: será que ele sabia que eu
sou um atleticano tribal, que ele correu risco de vida, que o que ele fez é
passível de processo no Procon? Tentei dizer algo, mas mordi a língua
anestesiada, a cara intumescida – impossível assobiar. Um dia para esquecer.
Respirei fundo. Meu lado zen enfim venceu. Saí de lá com uma promessa radical:
ou o Atlético arruma um time decente para o Brasileirão, ou juro que nunca mais
vou ao dentista.
Demais né? hehe
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